quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Decálogo do Resenhista

Refém da vida social literária, a resenha precisa ser resgatada da mediocridade.

NELSON DE OLIVEIRA
Escritor


A resenha está para a crítica literária assim como o haikai e o soneto estão para a poesia : é uma miniatura analítica. Porém, apesar de ser uma das formas fixas mais interessantes da indústria cultural, a arte da resenha está em perigo. Se o assunto é a análise literária, muitos pingos precisam urgentemente ser postos nos respectivos is. Desmerecida pela tradição universitária, a resenha, filha legítima do já falecido rodapé, nos últimos anos deixou-se corromper. Perdeu a garra e as garras, emburreceu, vivo objeto de propaganda e barganha:
“Você fala bem do meu livro, que eu falo bem do teu.” Resenha não é afago, não é bordoada não é anúncio publicitário. Atualmente refém da vida social literária e da massificação das revistas e dos cadernos culturais, a arte da resenha precisa ser resgatada. Por quê? Por nenhuma razão prática. Simplismente porque há bastante nobreza em se cultiva as coisas belas e inúteis, como a própria arte literária.


1. Leia o livro todo.

Não, esse imperativo não é piada. Apesar de ser o fundamento de toda resenha, ele muitas vezes é completamente ignorado. A pressa da imprensa e a baixa remuneração fazem com que muitos resenhistas apenas sobrevoem, apenas cheirem os livros. Mas, baseados em evidências claras presentes na resenha, todo autor analisado e todo leitor atento que conheça a obra resenhada saberá quando o resenhista não leu o livro de cabo a rabo. Razão pela qual o resenhista deve organizar seu comentário crítico de maneira que nele apareçam sinais inequívocos e marcas precisas, às vezes sutis, de que o livro foi integralmente lido.

2. Não resenhe o livro dos amigos .

O vínculo afetivo sempre compromete a análise literária e, via de regra, o resenhista tende a ser mais condescendente com o livro dos amigos. Na comunidade humana a imparcialidade e a independência completas não existem, a final todo resenhista é motivado por forças conscientes mas também, e em maior grau, por impulsos inconscientes. Não é incomum o caso do resenhista que também publica livros e, para manter as boas relações com o editor sempre favorece os lançamentos da sua editora. Quanto mais distante o resenhista ficar do livro dos parentes, dos amigos e dos colegas de trabalho, mais legítima será sua resenha.

3. Não resenhe o livro dos desafetos.
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O vínculo afetivo sempre compromete a análise literária e, via de regra, o resenhista tende a ser mais vingativo com o livro dos desafetos. A resenha não deve ser usada como punhal de desforra ou como forma de bajular os desafetos dos desafetos do resenhista.

4. Compreenda toda a cadeia evolutiva.

Ao resenhar o último romance ou a última coletânea de contos de determinado autor, é imprescindível conhecer as obras publicadas anteriormente por esse autor. Se a resenha se restringir apenas ao último lançamento, sem levar em conta toda a cadeia na qual o novo livro está inserido, dificilmente cumprirá sua função.

5. Colete o maior número possível de informações sobre o livro.

E também sobre o autor, é claro. Depois de ler o livro pela primeira vez e antes de iniciar a segunda leitura, procure tudo o que de relevante já foi publicado sobre a obra e seu autor. Procure conhecer o terreno no qual pretende pisar. Se o livro em questão for uma tradução, colha informações também sobre o tradutor. Diante do esforço necessário para cumprir esse imperativo, ideal é que o resenhista evite, numa única resenha, debruçar-se sobre a obra de mais de um autor.

6. Diga algo novo.

Mas só tente inventar a roda ou descobrir o fogo depois de verificar se o roda já não foi inventada e se o fogo já não foi descoberto. Não repita o que já foi dito em outras resenhas. Resenha crítica não é press release nem coleção de aspas. Um dos piores vícios de quem escreve sobre livros é transformar o texto num apanhado de comentários feitos por outros resenhistas, por críticos acadêmicos ou pelo próprio autor da obra analisada.

7. Só resenhe uma tradução cotejando-a com o original.

As edições brasileiras de livros estrangeiros apresentam três desafios para o resenhista: a obra original (sua importância e seus problemas intrínsecos), a nova obra em português (o talento ou a falta de talento do tradutor) e a relação do texto em português, com o texto original. A resenha não deveria ter apenas ao segundo desafio (a nova obra em português tampouco fazer de conta que a tradução e a obra original são a mesma coisa. Não são porque foram produzidas por culturas diferentes e isso deve ser levado em consideração).

8. Não ignore aspectos materiais do livro.
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O formato do livro, a capa, o projeto gráfico, o papel, a encadernação, as famílias tipográficas, as fotos e as ilustrações (quando houver) e a maneira como tudo se relaciona com a matéria literária, reforçando-a ou prejudicando também deve ser considerada na resenha।

9. Seja rigoroso com a forma

Evite a concisão e a economia própria das notas e dos aforismos. Evite o confessionalismo e o derramamento próprio da crônica. Evite a digressão e os desvios próprios do ensaio. A resenha, como o conto, é o texto que manda de cinco a vinte minutos de leitura. Nem mais nem menos.

10. Siga o seu instinto.

Não acredite na objetividade científica. Desconfie dos métodos de análise que prometem revelar, de maneira exata, a verdade absoluta e irrefutável de determinada obra. Toda resenha é um gesto político, razão pela qual não existe resenhista imparcial e independente, preocupado apenas com o bem comum. Os resenhistas não são querubins, são mamíferos com desejos e temores. A objetividade científica não passa de ficção, mas ela ainda é a melhor ferramenta que temos contra a barbárie. O raciocínio lógico é a fundação que mantém de pé a nossa civilização. Mesmo assim, cuidado com seus truques e suas artimanhas.

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