domingo, 6 de dezembro de 2009

Getúlio, Mito









Carlos Heitor Cony, com a honestidade intelectual que lhe é marcante, escreveu durante várias semanas, ao tempo em que trabalhava na revista Manchete, os capítulos daquele que viria a ser o livro Quem Matou Vargas। Na apresentação, o escritor-jornalista, que havia sido o alvo preferido do ministro do Exército do primeiro governo militar pós-64, general Arthur da Costa e Silva, que lhe moveu vários processos, levando-o inclusive à prisão, confessa a desfavorável impressão que, na mocidade, tivera de Getúlio Vargas. Na única vez em que o vira pessoalmente, “ajoelhado num suntuoso genuflexório”, tal posição física produzira-lhe juízo negativo. “Sabia que aquele homem não era católico, nem acreditava em Deus. Por que ajoelhar-se então? Por cortesia, por bajulação à Igreja?”.
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Aconteceu que era para escrever sobre Vargas e Cony pesquisou a sua infância, a sua adolescência, os seus tempos de acadêmico de direito, enfim, “todas as etapas da sua vida”. Entrevistou parentes, amigos, inimigos, adversários, pessoas que trabalharam com e contra Vargas. Leu coleções inteiras de jornais e muitos livros. Viajou quilômetros não contados e fez incontáveis anotações, longo fichário. Ao final de tudo isso, Carlos Heitor Cony, na parte introdutória de Quem Matou Vargas, conclui: “Se não fosse Getúlio Vargas, hoje eu estaria sentado na Cinelândia, junto dos homens de minha geração, tocando aquela flautinha para encantar serpentes। Turistas amáveis, de blusões coloridos, dariam gorjetas e tirariam fotografias. Esse seria mais ou menos o Brasil em que estaríamos vivendo se não tivesse ocorrido aquilo que se pode chamar de Época de Vargas. Sei que é preciso ter um pouco de audácia para afirmar isso, mas afirmado está. E a audácia vai mais longe: disse, no início, que não devia nada a Getúlio. Pensando bem, vejo que lhe devo, lhe devemos muito”.
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À página 125, o escritor, comentando o estilo de agir do chefe do governo provisório constituído pela Revolução de 1930, não titubeia, afirma: “Nascia um político — o maior da história do Brasil”. Opinião também manifestada por Barbosa Lima Sobrinho, do alto da sabedoria e da experiência de quem viveu o século 20 inteiro em entrevistas às Páginas Amarelas da revista Veja, aos 97 anos.

O veredito favorável a Vargas, como reconhece o autor de O Ato e o Fato, exige audácia. Realmente. É da historiadora Aspásia Camargo este registro: “Para admiradores e correligionários, Vargas foi o símbolo da emancipação nacional, da criação de um Estado forte e soberano e do trabalhismo nascente. Para irredutíveis adversários, o político das manobras, maquiavélico, prepotente, o ditador e o caudilho”. Temos aí, na observação da historiadora, a tese e a antítese. Barbosa Lima Sobrinho (primeiro historiador da Revolução de 30), conhecendo singularmente todo o processo político brasileiro do século 20, e Carlos Heitor Cony, tendo com absoluta isenção mergulhado, investigativa e analiticamente, no estudo da personalidade e da atuação do notável gaúcho, apresentam, com autoridade inquestionável, a síntese. Síntese da obra fecunda e fecundante do solitário de Itu.

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EURICO BARBOSA, ex-deputado e ex-presidente do TCE, é historiador e autor, entre outros livros, de Confissões de Generais। Pertence à Academia Goiana de Letras, da qual foi presidente।

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