domingo, 6 de dezembro de 2009

O mito continua









Revista Época, Edição nº 327 História
Em lançamentos e reedições, os escritores se rendem à lenda e arrancam Getúlio Vargas da História para mergulhá-lo na pura ficção



Luís Antonio Giron

Getúlio Vargas rende mares de tinta, apesar de o assunto ter sido praticamente esgotado pelos acadêmicos e não haver fatos novos revelador neste cinqüentenário। No terreno das teorias conspiratórias e da ficção, porém, Vargas está saindo da História para entrar na Mitologia। Da enxurrada de lançamentos e reedições, destacam-se três títulos: o romance Getúlio, de Juremir Machado da Silva (Record, 434 págs., R$ 44,90), o ensaio Vitória na Derrota - A Morte de Getúlio Vargas (Casa da Palavra, 248 págs., R$ 39,90), do sociólogo Ronaldo Conde Aguiar, e o folhetim Quem Matou Vargas, em edição revista e aumentada (Planeta, 256 págs., R$ 37,50), de Carlos Heitor Cony.

Se o romance contém doses cavalares de pesquisa, os demais títulos, aparentemente objetivos, carregam na fantasia.Ninguém que aborda o tema resiste a especular sobre o crime da Rua Tonelero, até hoje não resolvido, e imaginar as circunstâncias do suicídio: a motivação, a carta-testamento, a conversa entre Getúlio e seu irmão, Bejo, antes do gesto final. Mesmo a célebre frase da carta-testamento - 'Saio da vida para entrar na História' - é posta em dúvida. Muitos acreditam que ela foi acrescentada depois, já que não consta do rascunho de Getúlio. Com tantos elementos, a imaginação dos escritores sobe até a estratosfera. O homem, o político e sobretudo o enigma Getúlio continuam fascinantes

'Ainda não foi escrita a grande biografia de Getúlio', reconhece Cony. 'E não serei eu a escrevê-la, pois é preciso fôlego para dar conta da documentação. Além disso, o biógrafo deverá decifrar o episódio da Tonelero.' Trata-se de um legítimo 'crime perfeito', segundo o autor, que busca resolvê-lo pela imaginação. Seu livro supõe que a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA) foi responsável pela armação do atentado para derrubar o governo. 'Isso aconteceu na Guatemala e se repetiu no Chile', compara Cony. 'No Brasil, o governo americano mantinha pessoal treinado e pode ser que tenha tramado um golpe.' O texto, publicado na revista Manchete, em 1967, é deliciosamente conspiratório, cravado com fartas rajadas de ficção. Cony, de 78 anos, confessa que não gostava de Getúlio na juventude, mas mudou de opinião: 'Sem ele, o Brasil seria uma nação atrasada'.

Aguiar, sessentão, ex-petista e professor da Universidade de Brasília, admira Getúlio desde a infância. Acha que nesse assunto a imaginação é incontrolável, mesmo para um cientista social como ele. 'Meu texto se divide em três blocos', diz. 'Os primeiros capítulos são reportagens, depois pulo para a análise. E o estilo que usei no último é a ópera.' O livro exibe uma empolgante mistura de documentação e suposição. 'É possível que o Império Americano, as multinacionais e a direita tenham tramado tudo', viaja. 'Não há crise política que resista a um cadáver moço, e fardado. Vaz, jovem, casado e pai de quatro criancinhas, cabia no figurino.' Em sua análise, Getúlio foi uma das muitas vítimas do imperialismo na América Latina. 'Mas fez do suicídio um triunfo.'

Machado da Silva tem 42 anos e não viveu a era Vargas. Mesmo assim, ambicionou penetrar na consciência do ditador. Não descobre nada de novo, mas jura que seu projeto biográfico não fracassou: 'Fiz uma opção estética. Sou um romancista em busca de bons assuntos'. Sem assumir posição, o romance dá voz a várias interpretações por meio de personagens reais e de ficção. O fio condutor lembra Conversa na Catedral, do peruano Mario Vargas Llosa: Tércio, ex-militante comunista, trava um diálogo com Angel, namorada da ex-mulher de Bejo (atenção: é um 'romance pós-moderno', como diz o autor, o que significa que não tem compromisso com a verdade) no Catete. 'Getúlio foi um labirinto dentro do labirinto', supõe o escritor. O leitor se sente assim mesmo, desorientado pela montanha de hipóteses e visões contraditórias. Ali, entre cenas escatológicas e digressões, os seres de ficção são frágeis e soterrados pelos de verdade. Machado da Silva entrevistou 72 sobreviventes. Faz desfilar figuras como a ex-vedete Virginia Lane, que jura até hoje, aos 82 anos, ter sido amante de Getúlio e vivido temporadas na fazenda dos Vargas. Gegê, como Virginia o chama, teria sido assassinado. O autor se ocupou no passado em demolir os mitos sulistas Érico Veríssimo e Mário Quintana, mas sucumbiu aos encantos do caudilho. 'Afinal, sou gaúcho, de Santana do Livramento', diverte-se, referindo-se às raízes fronteiriças comuns com seu herói. 'Iniciei vendo-o como ditador. Mas passei a simpatizar com ele. Apesar de tudo, Getúlio fez mais pelo Brasil que Lacerda, polemista genial.' O narrador se deixou tragar pela lenda. E o leitor flutua em dúvidas. ''Ele foi um labirinto dentro do labirinto'', diz o romancistaTornou-se consenso afirmar que Getúlio produziu o cadáver mais ativo da História brasileira। O amuleto necrofílico conseguiu atrasar o golpe militar em dez anos e, apesar de o ciclo do trabalhismo ter-se encerrado, segue produzindo fumaças fantásticas. 'Foi ditador, revolucionário e estadista', observa Cony. Aguiar dispara: 'Com todos os defeitos, ele tinha um projeto para o Brasil'. Getúlio ainda é uma esfinge devoradora.

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